Decisão do TJMS (Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul) em 2016 baseada no livro Marco Civil da Internet de Cássio Brant

A obra de Cássio Brant é citada para solução de um caso no Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. O livro Marco Civil da Internet foi um dos primeiros a tratar do assunto no país. Foi publicado em 2014 pela Editora D´Plácido e, quase 2 (dois) anos após, é referência para fundamentar decisões importantes em alguns tribunais do país, a exemplo do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul que citou a obra do autor para usá-la como fundamentação jurídica em um caso envolvendo o Facebook.

O assunto ainda é novo para uma dimensão tão complexa como se mostra os temas entre Direito e Tecnologia que requer estudo aprofundado por especialistas na área. Sem dúvida, a obra de Brant aponta-se para ser referência para tratar de assunto sobre Direito Tecnodigital no país.

O número de ações que envolvem tecnologia ainda é pouco expressivo. Entretanto, aponta-se um crescimento significativo nos últimos anos. Há fatores que dificultam a população de provocar demandas desta natureza. Uma delas trata-se da produção de provas materiais a serem levadas em juízo e, por outro lado, existe uma carência de profissionais de fato especializados nesta área que auxiliem  de forma adequada casos que envolvem conteúdos desta natureza.

TJMS – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MATO GROSSO DO SUL

15 de março de 2016

1ª Câmara Cível Apelação – Nº 0809642-63.2014.8.12.0001 – Campo Grande

Relator – Exmo. Sr. Des. Divoncir Schreiner Maran

Apelante : SENAI- Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – DR/MS

Advogada : Célia Kikumi Hirokawa Higa Advogado : Mariella Mamede Duarte

Apelante : Facebook Serviços Online do Brasil Ltda.

Advogado : Celso de Faria Monteiro

Apelado : Senai – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – Dr/ms Apelado : Facebook Serviços Online do Brasil Ltda.

EMENTA – APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – DISPONIBILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS – REDE DE INTERNET – LEI DO MARCO CIVIL DA INTERNET (N. 12.965/2014) – REQUISITOS – NÃO PREENCHIDOS – AUTORIZAÇÃO NÃO CONCEDIDA – SENTENÇA REFORMADA – RECURSO PROVIDO DO FACEBOOK SERVIÇOS ONLINE DO BRASIL LTDA. E IMPROVIDO DA SENAI.

A sentença merece ser reformada, pois apesar da Lei n. 12.965/2014, em seu artigo 10, § 1º, autorizar a disponibilização de dados pessoais ou outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, sua apresentação somente ocorrerá se presente os requisitos do artigo 22 da referida lei.

Após analisar os autos, constato que estão ausentes todos os requisitos legais que autorizam a quebra do sigilo de dados pessoais, quais sejam:fundados indícios da ocorrência do ilícito; justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e período ao qual se referem os registros. Destarte, se não estão preenchidos os requisitos estampados no artigo 22, parágrafo único e incisos, resta inviabilizado o pedido da requisição dos dados pessoais

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os juízes da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, na conformidade da ata de julgamentos, por unanimidade, negar provimento ao recurso do SENAI e dar provimento ao do Facebook Serviços Online do Brasil, nos termos do voto do relator.

Campo Grande, 15 de março de 2016.

Des. Divoncir Schreiner Maran – Relator

 

R E L A T Ó R I O

O Sr. Des. Divoncir Schreiner Maran

Facebook Serviços Online do Brasil Ltda. apela da sentença que obrigou-o a disponibilizar ao requerente Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI, os nomes e as qualificações pessoais dos usuários responsáveis pela criação dos perfis referidos nos autos (“mil tretas”, “josé afunda”, “mil tretas.3745” e “segredos senai”), no prazo de 30 dias, sob pena de multa diária de R$ 500,00, limitada a 60 dias multa, nos autos da Ação de Obrigação de Fazer c/c Reparação por Danos Morais.

Alega que apesar do magistrado singular ter afirmado na sentença que as contas reclamadas pelo apelado, em verdade, não possuem caráter ou conteúdos ilícitos, contrariamente, ordenou que se procedesse a quebra do sigilo do dados de usuários. Ocorre que tal determinação é careceredora dos requisitos legais necessários, segundo o artigo 22 da Lei n. 12.965/14.

Ressalta que a apresentação de dados sigilosos é medida excepcional, já que a regra vigente preza pela preservação da privacidade, intimidade e sigilo dos dados, nos moldes do disposto no artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal, e ainda, prevista na Lei do Marco Civil.

Afirma que o fornecimento das qualificações pessoais mostra-se desnecessária, pois a apresentação do endereço de IP é plenamente suficiente para a identificação pretendida pelo apelado.

Por fim, requer o provimento do apelo, para que seja reformada a sentença in totum, afastando a obrigação do fornecimento de dados dos usuários responsáveis pelas contas e conteúdos combatidos na lide.

Sem contrarrazões.

Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI também apela da sentença, alegando que as publicações feita na rede social da requerida não se tratam de liberdade de expressão, uma vez que são extremamente grosseiros e ameaçadores, como no trecho “Caros amigos… Desculpe o inconveniente mas… Pareceme que o Sistema S está se definhando… Conseguiram bloquear o face de meu amigo José Afunda Senai da Silva… Isso vai se repetir sempre. Espero que entenda a minha situação. Mas se acalme… Nunca vou deixa-los de lado… Não até ter saciado minha fome por vingança desses vilipendiadores, obnoxos e iracundos cães vikings.” (f. 234)

Afirma, também, que a rede social Facebook tem responsabilidade sim acerca das informações colocadas em sua rede, a partir do momento que toma ciência do fato. Assim, “a sentença merece reforma nesta parte, pois, restou claro a desídia da apelada quando das denúncias em sua página na internet (a partir do momento que tomou ciência do fato), podendo o perfil difamatório ser visto até hoje” (f. 235).

Por fim, requer o provimento do apelo.

Resposta às fls. 242-262.

V O T O

O Sr. Des. Divoncir Schreiner Maran. (Relator)

Considerando a correlação entre as matérias argüidas em ambas apelações, os recursos serão analisados em conjunto.

O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI propôs a presente ação de obrigação de fazer com indenização por danos morais, alegando que através de perfis criados na rede social Facebook, estariam-lhe denegrindo a imagem e reputação por meio de divulgações e postagens ofensivas e difamatórias.

O juízo singular entendeu que nas postagens questionadas pelo autor, não se vislumbra possuírem conteúdos com o alegado intento de ofender, injuriar, difamar ou caluniá-lo, e sim, que as ditas publicações revelam-se como simples manifestações de pensamento, de expressão e de informação, pelo locutor. Contudo, o magistrado determinou a apresentação de dados pessoais dos responsáveis pelas publicações, porque em que se pese o direito constitucional à livre manifestação de pensamento e opinião, já delineados anteriormente, é cediço que a carta magna veda o anonimato (artigo 5º, inc. IV, da Constituição Federal).

Todavia, a sentença merece ser reformada, pois apesar da Lei n. 12.965/2014, em seu artigo 10, § 1º, autorizar a disponibilização de dados pessoais ou outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, sua apresentação somente ocorrerá se presente os requisitos do artigo 22 da referida lei.

Isso porque o próprio artigo alhures, preceitua que a disponibilização de registros será na forma do artigo 7º e Seção IV desta lei, vejamos:

“O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros mencionados no caput, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo, respeitado o disposto no art. 7º.”

O artigo 7º apresenta o rol dos direitos assegurados ao usuário, especialmente nos incisos II e III, que rezam, respectivamente, “inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei” e “inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial”.

No presente caso, mostra-se pertinente a disposição na Seção IV, que trata da requisição judicial de registro, no qual determina que o pleito da parte interessada em requerer dados pessoais de identificação do usuário, deverá apresentar três requisitos legais, a saber:

“Art. 22. A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet

Parágrafo único. Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade:

I – fundados indícios da ocorrência do ilícito;

II – justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e

III – período ao qual se referem os registros.”

Discorrendo sobre os requisitos para o acesso a dados, Cássio Augusto Barros Brant ensina que:

O Marco Civil da Internet visa que, qualquer pessoa interessada, poderá requerer ao juiz o acesso aos registros de logs dos provedores de acesso ou de aplicações à Internet. Caberá a Justiça o papel de verificar a pertinência do pedido e decidir fundamentando nele. O interessado deverá comprovar, além da utilidade e pertinência, que existam forte indícios da prática considerada ilícita. Poderá fazer um pedido que inclusive especifique o período de tempo que foram efetuados os logs de registros. (Marco Civil da Internet. Comentários sobre a Lei 12.965/2014. D’Plácido Editora)(g.n.)

Após analisar os autos, constato que estão ausentes todos os requisitos legais que autorizam a quebra do sigilo de dados pessoais, consoante artigo supracitado.

Quanto à alegação da parte autora de que as publicações são ofensivas, tem-se que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, elenca, dentre os direitos e as garantias fundamentais, a livre manifestação do pensamento (inciso IV) e, de outro lado, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (inciso X).

A livre manifestação do pensamento, como de correntia sabença, não é absoluta, tanto que encontra limitação no direito à intimidade, à honra e à imagem das pessoas, o que determina, em caso de ofensa ou violação a um destes direitos, a reparação do dano.

Destarte, compartilho o mesmo entendimento do próprio magistrado singular, no qual entendeu que não houve ilicitude nas declarações feitas por usuários do Facebook, fundamentando que:

“Embora sejam desagradáveis ao REQUERENTE e possam, inclusive, ter sua erronia comprovada oportuna e posteriormente, imputando-se responsabilidade não à REQUERIDA, mas ao terceiro responsável pela criação do perfil e autor das postagens, as notícias veiculadas não se travestem, de maneira direta ou indireta, no caráter ofensivo apontado na inicial, não havendo como se obstaculizar a livre publicação, posto que é livre a expressão de opiniões, mesmo quando incisivas e desagradáveis ao seu destinatário.” (f. 211)(g.n.)

De fato, vê-se que as publicações feita no site do apelante estão amparadas pela Constituição Federal, no qual protege o direito à liberdade de expressão, tal situação, por si só, afasta qualquer alegação de indícios da ocorrência do ilícito. E, portanto, não há falar em responsabilização da requerida.

Assim, não há qualquer elemento, nesse momento do processo, que leve à conclusão de que a decisão do douto condutor do processo em primeiro grau deva ser modificada.

Verifica-se também da exordial que o autor requereu genericamente a identificação do responsável por tais postagens, de modo a obstar o seu pedido, pois não justificou motivadamente a utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória e o período ao qual se referem os registros, vejamos:

“É certo que a identificação do responsável por tais postagens de cunho difamatório gera prejuízo de ordem moral de inestimável grau ao requerente, uma instituição conceituada, que há anos oferece cursos técnicos para capacitação de pessoas.

[…]

Dessa forma, a quebra de sigilo dos dados do usuário, criador do perfil falso na rede social Facebook, utilizado para difamar e denegrir a imagem do SENAI MS, é medida legal e cabível como forma de proteção ao direito a honra e a imagem.” (f. 10)

Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça orientou no REsp. 1.186.616/MG que “Os dados pessoais fornecidos ao provedor devem ser mantidos em absoluto sigilo como já ocorre nas hipóteses em que se estabelece uma relação sinalagmática via internet, na qual se fornece nome completo, números de documentos pessoais, endereço, número de cartão de crédito, entre outros sendo divulgados apenas quando se constatar a prática de algum ilícito e mediante ordem judicial.”

Destarte, se não estão preenchidos os requisitos estampados no artigo 22, parágrafo único e incisos, resta inviabilizado o pedido da requisição dos dados pessoais.

Portanto, a sentença merece reforma quanto a este ponto, pois está dissonante da Lei do Marco Civil da Internet.

Isto posto, dou provimento ao recurso ao recurso de Facebook Serviços Online do Brasil Ltda., para afastar a obrigação do fornecimento de dados pela empresa apelante, julgando totalmente improcedentes os pedidos formulados na exordial, e nego provimento ao recurso de Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI. Outrossim, invertendo-se os ônus sucumbenciais, condenando o autor ao pagamento integral das custas e honorários.

D E C I S Ã O

Como consta na ata, a decisão foi a seguinte:

POR UNANIMIDADE, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO DO SENAI E DERAM PROVIMENTO AO DO FACEBOOK SERVIÇOS ONLINE DO BRASIL, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR.

Presidência do Exmo. Sr. Des. Sérgio Fernandes Martins

Relator, o Exmo. Sr. Des. Divoncir Schreiner Maran

Tomaram parte no julgamento os Exmos. Srs. Des. Divoncir Schreiner Maran, Desª. Tânia Garcia de Freitas Borges e Des. Sérgio Fernandes Martins.

Campo Grande, 15 de março de 2016.